30/09/2014

Horário político, que produto ruim, hem?

         Eu nunca havia prestado muita atenção no horário político. Nestas eleições, não consigo escapar dele. Estou perplexo: tanta inteligência reunida, para apresentar ao público um produto de péssima qualidade! Duvido que ele consiga formar opinião de uma pessoa sequer.
         Mais uma eleição se passa e o eleitor se vê obrigado a votar no escuro, sem conhecer seus candidatos, sem saber o que pensam, o que pretendem fazer, se eleitos. Olho para a TV e vejo o Tiririca com um bife espetado na ponta do garfo e me pergunto: que país é este?
         Uns não têm tempo e mostram uma exposição ridícula, nome, número, uma ou duas frases que cheiram demagogia e pronto, acabou; outros, que têm um tempo maior, gastam grande parte dele para atacar o adversário. Não há discussão, propostas minimamente articuladas, nada, nada, nada.
         Um extraterrestre que aqui chegasse e assistisse a um desses programas iria pensar que temos um concurso para ver quem consegue deixar o telespectador mais irritado ou mais cansado. É tudo muito chato e incompetente.
         São tantos os interesses em jogo, que ficamos sem saber como essa “coisa” poderia ser resolvida. Apesar dos avanços da Internet, a TV ainda é um canal de extrema importância para esclarecimento do grande público. Presumo que seja nela que deve ter início a grande discussão que precisamos fazer sobre políticas orçamentárias, cobrança de tributo, reforma política, saúde, educação, relações internacionais, o assombroso impacto que a Internet exerceu e ainda vai exercer, proximamente, na sociedade brasileira, tudo isso se deixarmos por barato, porque existe ainda uma enormidade de outros assuntos, cujo entendimento por parte das pessoas que vão votar é urgente e indispensável. Os candidatos, contudo, passam ao largo dos problemas, como se ao público bastassem “promessinhas” e muito “quas-quas-quas”.


Para cego ver:
(Desenho de Regis Soares: Uma pessoa na televisão falando que irá começar o Programa Eleitoral Gratuíto e um casal, um gato e um cachorro correndo para longe da tv!)

28/09/2014

Saga de Nilton, pai de Rafael

         A vida não tem sido nada fácil para Nilton, um pequeno empresário do setor gráfico que acompanhou seu filho, Rafael, como cuidador, numa primeira internação no Lucy Montoro, Morumbi, São Paulo. Rafael é um moço de 35 anos, alto, forte. Era lutador de Taekwondo. Fez um exame cardíaco que apontou um problema grave a sugerir que ele deveria parar de lutar. O que fez? Talvez por amor ao esporte, não se sabe, escondeu o problema do pai e da esposa e continuou a vida de atleta como se não soubesse de nada.
        Era sábado e Rafael foi participar de uma competição no ginásio de esportes de São José dos Campos. O previsível então aconteceu: Rafael teve uma parada cardíaca durante a luta; foi colocado numa ambulância e, a caminho do hospital, faltou oxigênio (maldita imprevidência brasileira) e Rafael teve severa lesão cerebral que depois de muitos meses ainda o mantém dependente de terapia intensiva e de um cuidador para se alimentar, fazer as necessidades fisiológicas, guiá-lo em caminhadas curtas, para onde quer que vá. Seu maior problema é o cérebro, que acorda lentamente e responde com lentidão aos estímulos. Após semanas de internação, a melhora ainda é muito tímida para desespero do pai.
        Rafael é filho único. Na minha primeira internação fiquei num quarto em frente à copa do sétimo andar. Antes do almoço e do jantar era só olhar para a copa e ver os dois, pai alimentando o filho, colher a colher, para depois ele, pai, poder tomar também a sua refeição. Às vezes Nilton se desesperava:
- Rafael, levanta a cabeça, levanta a cabeça, levanta a cabeça, lev...
        Ficava muitas vezes irritado e não conseguia perceber que o filho fazia progresso. Um dia Nilton repetiu umas cinco vezes o pedido - levanta a cabeça - e Rafael continuou de cabeça apontada para o chão. Em seguida foi Nilton que derrubou sua cabeça, irritado e desanimado. Nesse instante, revelando ter preservado o senso de humor, Rafael levanta a cabeça e ordena ao pai: - Levanta a cabeça! - E quase ao mesmo tempo olha para mim que sentara ao lado dos dois e dá, junto comigo, uma sonora gargalhada. Foi muito engraçado.
       Ainda não faz cinco anos que Nilton perdeu a esposa, de um mal cardíaco. Eu tive de sair do Lucy antes dos dois. Era visível que Nilton se estressava cada dia mais. Outro dia liguei para Nilton. Queria notícias do pai e do filho. Ambos vão bem. O pai pareceu-me mais conformado com a lentidão da recuperação do filho. O Lucy Montoro quis propiciar uma nova internação de Rafael, o pai preferiu esperar mais uns meses pela evolução do tratamento cardiológico e neurológico. “Acho que voltaremos ao Lucy no começo do próximo ano” disse Nilton, sem esconder a alegria pelo meu telefonema.

(Imagem de luta de Taekwondo)

24/09/2014

Uma tímida e cativante profissional

         Foi minha mulher, Susana, quem a viu: aquela não é a Amanda? Olhamos todos, eu e meu filho Ives, e constatamos: sim, era ela. Fazia mais de dois meses que não a víamos. Em todas as vezes que estivemos no Lucy Montoro, no Morumbi, em São Paulo, a meu pedido, descemos ao menos um, andar das terapias, para tentarmos vê-la. Demos azar. Por várias razões, não conseguimos encontrá-la, mas agora ela estava ali, pertinho, como se fôssemos dar início a uma sessão de terapia ocupacional. Fiquei muito feliz em revê-la. Sua imagem de professora exigente, carismática, mas graciosa, cativante tem-me acompanhado durante várias horas do dia. Devo a ela grande parte da recuperação do meu braço direito, afetado duramente pelo AVC que sofri em julho de 2013.
        Ao conduzir minha cadeira de rodas pela casa, lembro-me de Amanda. Foi ela que insistiu para que eu a conduzisse, com pouca ou nenhuma ajuda do cuidador; na hora de trocar de camisa ou blusa, lembro-me de Amanda. Foi ela que insistiu exaustivamente: primeiro põe a manga do braço direito. Na hora de comer, lembro-me de Amanda. Foi ela que me fez cortar aqueles bifes de massa plástica dezenas de vezes. Era incansável em forçar a repetição dos exercícios até eu pegar o jeito. 
       
 No dia que a revi, Amanda não estava bem. Tomávamos um lanche na cantina do Instituto.  Ela disse estar com enxaqueca e talvez por isso não tenha vindo sentar-se com a gente assim que nos identificou. Minha mulher falou-lhe do meu desejo de revê-la. Ela respondeu com o seu sorriso característico, algo entre simpatia e timidez. Eu perguntei se ela acompanhava meu Blog. Disse que não, mas que estava curiosa para saber o que eu tenho escrito. Garantiu-me que a hora que sobrasse um tempinho entraria para ver tudo o que eu tenho escrito. Comentei que num texto menciono o nome dela. Deve ter ficado curiosa. Em casa, à noite, a primeira coisa que vejo é uma mensagem de Amanda: Como lhe prometi entrei hoje no seu Blog e, no primeiro texto, já me achei lá dentro...
        Amanda é dona de um rigor adocicado e talvez seja isso que a torne especial. A terapia é para certos pacientes, como eu, que nunca foi apaixonado por exercícios físicos, algo sempre difícil, penoso. As sessões com Amanda eram bem suportáveis, não chego a dizer que eram agradáveis, mas eu as suportava, digamos, com grande respeito e disciplina. Havia nela um ar ingênuo e suave, algo que parecia sair de sua alma. Tem vocação para aquele tipo de trabalho.

(foto de Amanda Ubida beijando um boneco)

21/09/2014

Agora a terra vai tremer!

      Quando minha cadeira de rodas aproximava-se da copa e eu já conseguia identificar algumas vozes conhecidas, começava a gritar com uma voz o máximo parecida com a voz dos locutores de rodeio:
     - Agooora a terra vai tremer!
       Era minha saudação ao companheiro de mesa, o super-simpático Marco Faria. Quando entrava na copa já havia o clima que desejava encontrar: todos ali estavam rindo certamente por associar meu grito à anedota que eu mesmo havia contado à mesa assim que soube que nosso novo companheiro de almoço e jantar era um peão boiadeiro famoso, premiado em vários rodeios do país, que veio parar no Lucy Montoro depois de ficar paraplégico por ter sofrido um acidente de moto na zona rural de sua terra, Itapeva. Eu já havia montado os touros mais bravios do país e nunca quebrei um osso. Naquele dia, véspera de Natal, saí de moto para levar uma leitoa para um amigo e pimba! trinquei a medula num acidente. Coisa do destino, fazer o que ?” – contou Marco Faria.
       A anedota surgiu depois do terremoto havido em Kobe, no Japão, há poucos anos atrás. A história teria ocorrido em Bastos, pequeno município da região de Marília, interior de São Paulo, e onde se concentra uma das maiores populações de descendentes de japoneses do país. Houve um rodeio em Bastos e o locutor, ao anunciar a entrada na arena de um touro bravio, gritou:
      - Agooora a terra vai tremer!
       A platéia desandou a correr, imaginando tratar-se de um terremoto.
       Os encontros de almoço e janta na copa do sétimo andar do prédio do Lucy Montoro, Morumbi, São Paulo, são assim mesmo, cheios de animação. Quando algum de nós faltava a um desses encontros e ninguém sabia as razões, todos se preocupavam. Quando, geralmente o cuidador, que dorme no mesmo quarto do ausente, chegava com a informação de que não ocorrera nada de grave, o alívio era geral. O convívio na copa do sétimo andar é feito também de muita solidariedade.
       Isto não era rigoroso, mas cada um de nós tinha um espaço à mesa que todos procuravam respeitar. Meu espaço, por exemplo, era mais próximo da ponta da mesa, à direita de quem entra na copa. À minha frente sentava Sebastião, tetraplégico. Um elevador caiu em cima dele ao visitar a obra de um edifício em companhia do pai. Tinha 14 anos de idade quando sofreu o acidente e hoje tem 22 ou 23 anos, quer dizer, já enfrentou quase dez anos de cadeira de rodas e fisioterapia. Havia entrado no Lucy Montoro há algumas semanas com graves problemas de respiração. Seu cuidador na maior parte do período de internação é seu irmão, Rômulo, que abandonou estudos e o trabalho para se dedicar de corpo e alma a Sebastião. Quando nos conhecemos, ele já respirava normalmente e recuperara o bom humor. Minha mãe levou esse sem teto lá para casa. Ele está morando com a gente agora, é o próprio Sebastião falando de seu novo cuidador, um rapaz baixinho, pequeno, que assumiu o posto para dar uns dias de folga a seu irmão. Não cheguei a gravar o nome dele.
       A freqüência na copa oscilava de acordo com o regime de internação no Lucy. Toda semana havia despedida de alguém que recebia alta. A amizade, o afeto não desaparecia. Até hoje tenho seguidores no meu Blog de pessoas que conheci no Lucy Montoro e de vez em quando recebo mensagens de alguém que frequentava a copa do sétimo andar. Aqui fora, como acontece comigo, as restrições de mobilidade dificultam as visitas pessoais, mas eu gostaria muito de ser visitado pelos amigos que cultivei lá dentro do Lucy.
       O período de internação varia de paciente para paciente e na média dura seis semanas. Se o paciente tiver forte potencial de melhora tem direito a mais uma internação. Já passei por duas internações e não encontrei, na segunda, nenhum amigo que fiz na primeira. Os encontros ocorrem mais ocasionalmente, nas vezes que você vai ao Instituto para uma consulta médica ou avaliação médica. Outro dia mesmo encontrei lá o Reginaldo, um negro alto e muito simpático. Estava em companhia de sua esposa e cuidadora. Ficou paraplégico ao dar um mergulho mal sucedido numa piscina.
       Já o seu João, amigo da minha primeira internação, eu vejo com freqüência em praticamente todas as vezes que vou ao Lucy, ele e sua graciosa cuidadora, uma garota de uns 21 anos, de cujo nome não consigo me lembrar. Seu João mora em São Paulo e para ele foi mais fácil optar por outro tipo de atendimento do Lucy, o ambulatorial, com uma programação de fisioterapia sem necessidade de internação. Seu João teve um AVC e em nosso último encontro, há duas semanas, comemorava, feliz, o fato de ter voltado a andar.

 
(Marco Faria montado em charrete)

16/09/2014

Uma terapia super eficaz no Lucy Montoro

        Mantido pelo SUS, o Instituto de Reabilitação Lucy Montoro, em São Paulo, funciona num prédio de dez andares, bem equipado, num cantinho do Morumbi. Não há instrumentos de fisioterapia ou terapia ocupacional que não exista lá dentro. O prédio, que é espaçoso, confortável, tem muito mais que isso: tem talvez o mais avançado centro de robótica aplicada à reabilitação da América Latina; uma pequena e eficaz indústria de órteses (peças confeccionadas a partir do molde em gesso que servem para corrigir deformidades de mãos, pernas e braços) e um setor especializado na aplicação de química botulínica e fenol como “auxiliares” da recuperação. Três andares do prédio são reservados à internação; dois andares – ou mais, não sei precisar – ficam disponíveis para atendimento ambulatorial daqueles pacientes, inclusive crianças, muitas crianças, que vão e voltam sem necessidade de internação.
        O Lucy Montoro tem fama de ser o mais eficaz centro de reabilitação do país, mas talvez nem seus idealizadores, mantenedores, gestores saibam qual é a melhor terapia que a entidade tem para oferecer naquele prédio do Morumbi. A melhor terapia que é praticada timidamente ali dentro chama-se CONVÍVIO. Já passei por duas internações ali, estou a caminho da terceira e, portanto, sei o que digo. Cada quarto abriga inúmeras histórias de superação e é nos raros momentos de convívio que essas histórias são reveladas por quem as protagonizou, com forte desinibição.
        Este é um momento mágico que o Instituto proporciona a uns poucos que têm espaço para se reunir na copa de seus andares. Dei sorte, fiquei, nas duas internações, no andar que tem a maior copa, o sétimo, de modo a permitir que quase todos os internos do andar possam se reunir e conversar animadamente. Saía desses encontros diários com meus estímulos no alto; funcionavam, esses encontros, no almoço e no jantar, como um grande lenitivo para persistirmos no tratamento e melhor suportarmos a nova vida, cheia de restrições.
        Aprendi com a vida que a melhor comunicação entre médicos, terapeutas, enfermeiros, com seus pacientes nasce dentro da empatia, que é, em linhas gerais, comunicar-se sendo capaz de mentalizar a condição do paciente, ter uma boa noção do que ele sente, o que pensa, porque age deste ou daquele jeito. Como estudioso e conhecedor dos meandros da comunicação posso dizer que a eficácia do Instituto daria um enorme salto de qualidade se elevasse os níveis de convívio com os pacientes de todos os profissionais mobilizados na reabilitação. Uma vez perguntei à uma terapeuta ocupacional porque ela, ainda que fosse um dia por semana, não almoçava “com a gente” na copa do sétimo andar e ela respondeu: “Seria ótimo se isso acontecesse, mas não dá tempo. Além dos internos, temos de atender o ambulatório, uma loucura diária”.
        O único andar que tem copa razoavelmente espaçosa é o sétimo. Os demais andares têm uma copa minúscula, que pode receber quando muito cinco pacientes acompanhados, cada qual, com o seu cuidador. Há boatos lá dentro de que os espaços para refeições serão aumentados em todos os andares. Se isso acontecer faltará apenas um arranjo de gestão para permitir que a corporação Lucy Montoro amplie seus momentos de convívio com os pacientes para além do atendimento profissional.
              Em todo prédio, quem melhor se comunica com os pacientes e seus cuidadores são as enfermeiras de quarto. Por que será, hem? Simples: o convívio entre elas e os pacientes é também bem maior pela natureza do trabalho.


(foto da frente do instituto Lucy Montoro)



13/09/2014

Jogo e maldade

       Enfrentei nos últimos anos uma grave crise financeira, causada pela derrocada do jornal Gazeta Mercantil, onde fui diretor de Unidade de Negócios por mais de seis anos e cheguei a passar quase um ano sem receber salário. Consumi nesse período toda a minha poupança e tive por diversas vezes de recorrer à ajuda de parentes - para ser mais preciso, foi um parente, um sobrinho da mulher, Sinésio, que teve a generosidade de transferir para mim uma parte da sua poupança, que ainda não consegui devolver. Devolverei. 
        Pois foi nesse período de aperto que eu comecei a “brincar” com as máquinas caça-níqueis. Embarquei nessa história por curiosidade e na época em que as “maquininhas” começaram a entrar no Brasil, ainda muito longe de representarem alguma ameaça à poupança e à renda das pessoas. A inflação, a instabilidade da moeda brasileira dificultava a entrada no país de máquinas que operassem com a moeda nacional que num dia tinha um valor e no dia seguinte outro valor completamente diferente.
        As primeiras máquinas que aceitavam o dinheiro nacional operavam, depois do Real, com moedas de 25 centavos e os bares viviam cheios de potes dessas moedas para alimentar o jogo. Nesse tempo, quem perdia muito, perdia 20 reais, ou seja, 80 moedas de 25 centavos. As primeiras maquininhas eram rústicas e lentas.  O jogador alimentava a maquininha com as moedas que caiam numa plataforma metálica. Um dispositivo da máquina empurrava as moedas em direção a um “abismo”. De vez em quando, a máquina cuspia uma fichinha de plástico, com um valor em Real inscrito no verso, que era o valor da restituição. As fichas se misturavam às moedas que as conduziam rumo ao “abismo”. Ficha caída no “abismo”, dinheiro no bolso.  A máquina restituía, a grosso modo, 20 por cento das apostas.
        A coisa começou a engrossar com a chegada das máquinas do “cachorrinho”. Elas começaram a aceitar notas de um e cinco reais. Tinham o que era chamado de noteiro, um buraco onde o jogador punha as notas. A máquina recebia a nota, conferia a possibilidade de ser falsa, e exibia numa tela o valor de créditos (para jogo) correspondente ao dinheiro depositado. Depositado o dinheiro, estabelecido o crédito, era só jogar- apertar um botão embaixo e acompanhar o resultado na tela. Chamava-se máquina do “cachorrinho” porque de vez em quando ela liberava um Poodle à direita da tela e o cãozinho, todo faceiro, puxava uma fieira de diamantes. Cada diamante representava algum valor de restituição. Era uma espécie de pequeno prêmio,  de "gás” para o jogador suportar o tranco até o pagamento de um bônus que, dependendo da máquina, passava de mil reais. Eu não conheci máquina que tenha pago o bônus antes de “engolir” pelo menos dois mil e quinhentos reais.

        Havia máquina do cachorrinho por toda parte: bares com e sem bocha, mercearias, padarias, clubes, restaurantes. Não havia comércio que não se interessasse pela novidade. A cada início de semana o dono da máquina aparecia para acertar as contas: apostas, bônus pago, ficava tudo registrado lá dentro. Sempre foi um ótimo negócio. Há informações de que até a Máfia Siciliana tinha - ou tem, não se sabe - participação no jogo das máquinas eletrônicas no Brasil.
        Eu ainda não havia me interessado pela máquina do cachorrinho quando, de carro, a caminho de casa, parei para ajudar a socorrer um jovem que se acidentara  de moto. No meio daquela confusão alguém pediu por um celular. Procurei pelo meu e descobri que o havia esquecido na cancha de bocha, onde ficara jogando até quase meia-noite. Esperei pela chegada da ambulância e voltei para recuperar meu aparelho. Lá chegando, vejo que três companheiros da bocha haviam enfiado, em sociedade, uma pequena fortuna cada um na maquininha do cachorrinho. Lembrei-me que eu estava com o bolso cheio de notas de cinco reais que havia recebido de troco numa pequena compra num supermercado.
        Os três já haviam parado de jogar por exaustão e combinado de continuar no dia seguinte bem cedo. Brinquei com o trio:
 - A,ha! Agora sou eu que vou tirar esse bônus!  exibia uma nota de cinco reais.
        Dois dos jogadores chegaram a pedir pelo amor de Deus  para eu não fazer aquilo, mas o terceiro começou a dizer :
 -  Deixa, deixa ele por! A manhã será menos cinco reais que a gente terá de colocar!
        Relutei alguns instantes, mas cedi às provocações  do jogador que gritava histérico Põe! Põe!. Parece que a máquina havia planejado tudo com o capeta. Pagou-me o bônus de mais de mil reais, mais vários cachorrinhos, quer dizer, um amontoado de prêmios que fez os amigos da bocha dizerem, por muito tempo, que eu era o único apostador a ter tirado o que poderia ser chamado de um bônus sensacional. Dali para frente peguei gosto pela coisa. Não demorou para surgir no círculo familiar a versão de que minhas dificuldades financeiras eram consequência do jogo, pois tudo que eu ganhava eu perdia nas maquininhas. Maldade, pura maldade.
        O caldo só foi engrossando, ou seja, as máquinas do cachorrinho eram espécie de videogame perto do que estava por vir e, no Brasil, tiveram uma clara função: formar a clientela para máquinas muito mais poderosas e capazes de roubar, em poucas horas, uma fortuna de um jogador contumaz e imprevidente. É um jogo muito ruim, dizia cheio de razão Edison Gasparoto, um amigo que admitiu estar viciado nas maquininhas e encontrou grande dificuldade para parar, mas parou.

         Atrás das máquinas do cachorrinho vieram outras muito mais modernas e poderosas, que por ironia dos criadores desse jogo eram chamadas de máquinas do capeta - uma sequência de três capetas na tela era - ou é, já não sei mais - um dos maiores prêmios que elas pagavam. E atrás da máquina do capeta vieram outras e outras, os controladores deste jogo eram férteis em imaginação: vieram as máquinas de cartela, que simulavam a antiga tômbola em várias versões, e uma infinidade de outros jogos que eu nem cheguei a conhecer. A que mais se espalhou foi uma que apresentava na tela quatro cartelas e o jogador definia o valor da aposta. Cada vez que o botão da aposta era apertado, uma pedra preenchia uma casa de uma das cartelas. Quando se conseguia preencher totalmente uma, duas, três ou quatro cartelas, o jogador batia o bingo, ou seja, recebia o prêmio máximo - um, dois, três mil reais ou mais, a depender do valor da aposta e do número de cartelas preenchidas.
        Foi na mesma época que apareceu nas grandes cidades brasileiras uma enxurrada de bingos, que de bingos mesmo só tinham o nome, que servia para mascarar o jogo eletrônico.  Era só entrar num deles e presenciar dezenas de máquinas de última geração em pleno funcionamento. No início, o bônus não tinha limite, poderia chegar a alguns milhares de reais. O valor aumentava de acordo com o volume de apostas. Certa vez começou a haver uma corrida ao bingo de Valinhos: o valor do bônus numa das máquinas havia atingido 150 mil reais. Alguns bingos de várias localidades ficaram quase vazios. Consta que os controladores do jogo enxergaram no caso de Valinhos uma clara distorção do sistema. As máquinas do Brasil foram então preparadas para pagar um bônus de valor máximo de 32 mil reais.
        Era evidente que as máquinas poderiam ser preparadas com antecedência a gosto dos donos do jogo, mas os jogadores se recusavam a acreditar nessas hipóteses. Umas pagavam o bônus com quinhentos reais de apostas, outras com mil, outras com três mil e havia aquelas que simplesmente não pagavam. No Rio de Janeiro, numa ação impetrada por uma entidade de defesa da economia popular, um juiz ordenou que um perito vistoriasse uma das máquinas por dentro; foi quando descobriu-se que elas tinham um drive que regulava o volume de restituições: drive aberto, muitos prêmios; drive fechado, poucos prêmios.
        Uma vez, fui testemunha de um episódio que assombrou os frequentadores do Bar do Concórdia, em Valinhos: na boca da noite, chegaram três jogadores - um casal bem jovem, uma senhora de uns 60 anos, que se fazia acompanhar por uma criança de 10 ou 11 anos . Chegaram e ocuparam três das máquinas. Em menos de meia hora  bateram 10 ou 12 bingos, um atrás do outro. O dono do bar pagou os primeiros prêmios  valor de três a quatro mil  reais- e se recusou a pagar os demais. Desconfiado de alguma treta, chamou o dono das máquinas que confirmou suas suspeitas: o trio era conhecido em todos os bingos da região de Campinas por aplicar o mesmo golpe. Deixava alguém do lado de fora passando um código a quem estava jogando. Era o código do bingo. Eu havia notado que antes de bater  um bingo, o jogador recebia uma chamada pelo celular. O trio foi escorraçado dali sob ameaça até de morte. Vá entender!
        Quem me via com frequência na frente de uma daquelas máquinas não vai acreditar que eu tinha meu limite; nunca aceitei perder mais do que quatrocentos reais numa noite de extremo azar. Quando perdia quatrocentos, ficava possesso. Parava de jogar alguns dias e ficava bicando as máquinas, ou seja, punha um valor mínimo aqui outro acolá. De repente, tirava um bônus ou batia um bingo: pronto! Estava habilitado a perder mais quatrocentos reais, o que era uma fração da minha aposentadoria que na época não usava, por desnecessário, para comprar gêneros de primeira necessidade. Meu salário nessa época era mais de quinze vezes o valor da minha aposentadoria. E  houve um longo período - mais de um ano - que uma dessas maquininhas me sustentou e contribuiu para o pagamento de algumas dívidas pesadas.
        Foi assim: já falida,  a Gazeta Mercantil havia me transferido para Santo Amaro, em São Paulo, onde fui inicialmente editor de meio-ambiente e depois editor de um caderno que era produzido pelas sucursais. Ao passar, na hora do almoço, em frente a um bar nas vizinhanças do prédio da Gazeta, ouço o som inconfundível de uma das malditas maquininhas. Entrei, havia gente jogando, esperei. Tinha dinheiro trocado no bolso, vou perder 20 reais, decidi. Pus dez, quando  ia por mais dez, chegaram dois rapazes que me pediram licença, pois tinham de dar uma conferida na máquina, afastei-me para deixá-los à vontade e um deles aproximou-se da máquina e meteu um dos olhos num visor acima da cabeça do jogador, que até então eu sequer havia notado. PQP, exclamou o rapaz assim que retirou o olho do visor. Os dois se afastaram, me deixando ali sem saber se continuava ou parava de jogar... Dei um tempo, esperei os dois se retirarem e meti um dos olhos no visor. Enxerguei dois números, um sobre o outro. E a única coisa que pude perceber foi uma enorme discrepância entre um número e outro. Resolvi jogar mais dez reais: agi certo, a máquina comeu menos de cinco reais e me pagou um bônus de quatro mil reais, o dono do bar teve de chamar o dono da máquina, pois não tinha ali dinheiro suficiente para me pagar. Fazia tempo que eu não via tanto dinheiro na mão.
        Fiquei mais de um ano trabalhando naquele prédio da Gazeta e de olho no visor da maquininha. Sempre que a discrepância entre um número e outro estava grande eu dava uma investida... punha dez, vinte, no máximo cinquenta reais; era batata: entrava geralmente duro e saía de bolso cheio. Essa maquininha ajudou-me também a me afastar definitivamente desse tipo de jogo, as máquinas que só roubavam perderam a graça.
        Olho hoje para esse meu passado de jogador e vejo que, junto com o cigarro, as maquininhas foram também uma estupidez. O período em que joguei só teve uma utilidade, a de constatar que a mídia  é cúmplice do jogo e da maioria dos processos que chegam  para erodir  a renda e a economia populares. A mídia é cega. Agora mesmo deve achar que a polícia venceu a guerra contra o jogo eletrônico no Brasil, sem saber que as maquininhas foram transferidas para a Internet e ganharam a forma de tabletes, celulares e computadores portáteis.




09/09/2014

Saiba em quem vou votar e porque

        Presumo que as pessoas que me acompanham neste Blog gostariam de conhecer minhas preferências eleitorais, gostariam de saber como vejo estas eleições agora que me tornei um cadeirante, ou seja, saber se minha nova condição de hemiplégico influenciou ou não minha decisão política. A resposta é ao mesmo tempo sim e não.
 Meu voto a deputado estadual será numa candidata da região de Campinas, onde moro, que se tornou paraplégica durante um acidente automobilístico aos 19 anos de idade. Eu já a conhecia como diretor do jornal Gazeta Mercantil em Campinas, quando promovi vários projetos de cunho ambiental e social e ela, Célia Leão, os apoiou  com entusiasmo.
        Ela sempre me foi muito simpática como política, mas minha decisão de votar nela se deu lá dentro do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro, em SP, onde estive internado por duas vezes. Soube lá dentro que ela foi decisiva na internação de um garoto – Roger, 21 anos- que ficou paraplégico após um acidente na piscina de um clube em SP. Foi atendido por um hospital público da cidade, onde recebeu alta sem a realização de uma cirurgia que os fisiatras (a fisiatria é uma especialidade médica nova, que surgiu no curso do desenvolvimento do moderno tratamento das lesões medulares e todas as suas implicações) do Instituto Lucy Montoro consideravam indispensável para que Roger desse início à reabilitação. O hospital público se recusava a fazer a cirurgia. Foi a deputada que removeu a resistência, sinônimo da mais  pura crueldade. Quando conheci Roger ele já havia realizado a cirurgia, estava internado no Lucy Montoro, onde deu início à reabilitação com um grande potencial de melhora. Sonhava então com a  possibilidade de poder concluir o curso de arquitetura que foi obrigado a abandonar após o acidente.
        Para deputada federal terei desta vez um imenso prazer em votar, pela primeira vez, em Mara Gabrilli. A decisão nada tem a ver com minha condição de cadeirante. Foi algo natural ao descobrir a revolução que esta mulher empreendeu na abertura e expansão de um tema que já me era caro e agora, diante da minha nova condição, tornou-se mais caro ainda- a acessibilidade urbana. Mara fez uso de sua condição de tetraplégica para despertar as atenções da sociedade para uma discriminação típica brasileira: a expansão, o crescimento e até mesmo a implantação de cidades inteiras ignorando a existência dos diferentes- hemiplégicos, paraplégicos, tetraplégicos, cegos, surdos, autistas, portadores de albinismo, de qualquer doença de cunho neurológico, enfim todas aquelas milhares e milhares de pessoas que têm alguma restrição de acesso.
        Todos devemos muito a essa linda mulher que se tornou tetraplégica num acidente do carro que dirigia a caminho do litoral norte de São Paulo. Ela parece movida a energia solar, não para, não descansa. Começou sua vida pública como vereadora em São Paulo, assumiu depois um cargo criado especialmente para ela na Prefeitura da cidade - secretária da acessibilidade. Quem a nomeou, o então prefeito José Serra, não se arrependeu: ela produziu o que pode ser chamado de revolução de acessibilidade no transporte coletivo. Mais do que obras, ela propagou o conceito e levou toda a grande cidade a refletir sobre a inclusão.
        Logo em seguida, elegeu-se deputada federal e, em Brasília, enxergou problemas de acesso até na rampa- famosa rampa- do Palácio do Planalto. Como deputada ela está por trás de toda a legislação que inclui e protege os deficientes no sistema de Saúde e Previdenciário. Olha, quem quiser conhecer melhor o que ela guarda para o seu segundo mandato como deputada federal precisa ligar para seu comitê em SP (11-3052 3913) ou escrever para ela (informativo@maragabrilli.com.br) e pedir suas propostas para o segundo mandato. E se preparar para ficar deslumbrado, assim como eu fiquei.
        Para Senador, meu voto vai para José Serra, de quem me tornei eleitor cativo depois de sua magistral  gestão no Ministério da Saúde.
        Para governador, seria injusto se não votasse em Geraldo Alckmin. Moro em Vinhedo, uma cidade da região de Campinas com cerca de 75 mil habitantes.
É de uma cidade assim e de uma região assim que os cidadãos têm uma visão mais objetiva da qualidade dos serviços públicos: nas mãos de Geraldo Alckmin, os serviços públicos estaduais funcionam muito bem e não sinto que eles poderiam evoluir nas mãos de seus adversários. Um dos grandes problemas de São Paulo é água. Houve sim negligência governamental frente ao assunto. O susto que São Pedro aplicou na moçada em 1914 deve ter sido suficiente para Alckmin e sua tropa acordarem.
        Bom, o enigma é o voto para presidente. Ainda sou um eleitor indeciso.
        Lamento que nenhum dos candidatos a presidente, nenhum, nem mesmo os nanicos, enxergue com mais clareza qual é o grande nó ambiental do Brasil. Acho que esse nó está em Angra dos Reis, onde uma a uma vão instalando usinas nucleares. Não adianta preservar o mico-leão-dourado. Uma hora qualquer uma daquelas usinas explode e vai tudo pelos ares—mico-leão, tartaruga marinha, onça pintada, parda, branca ou cor-de-rosa, vai tudo pelos ares, inclusive as rotativas e os geradores de uma mídia que, salvo honrosas exceções, não combate com severidade a energia nuclear e as enormes ameaças que ela representa. Pois bem, o meu candidato a presidente gostaria que fosse aquele que se manifestasse entusiasticamente contra a energia nuclear, até porque, José Goldenberg, o mais importante físico nuclear do Brasil já disse em alto e bom som que o país não vai precisar dela. Tenho inclusive uma proposta para quem quiser agir: cancelar no Congresso Nacional todas as iniciativas que impulsionaram o assunto. Fechar e lacrar as usinas já implantadas e usar uma delas como depósito do lixo radioativo (toneladas e mais toneladas) até agora acumulado.


(Uma foto de Célia Leão e outra da Mara Gabrilli)


05/09/2014

Revolução de hábitos

       Acordei para a vida, depois da cirurgia, como se eu fosse uma  outra pessoa - ex-fumante, compenetrado na ideia de ter uma alimentação saudável, desejando perder peso, aceitando mansamente as sessões de fisioterapia com o tempo que tiverem de durar, abandonei  o hábito de beber um bom vinho e de perder dinheiro em caça-níqueis.
        Eu era o oposto do que sou hoje - fumava desbragadamente; quanto mais gordurosa fosse a comida,  melhor; estive sempre, nos últimos 30 anos, com pelo menos 30 quilos acima do peso para um homem de estatura mediana; jogar bocha era meu único exercício  físico e, a concluir  pelo estado das minhas coronárias, nunca serviu  para coisa alguma; não era fanático, mas não rejeitava uma boa dose de cachaça, de preferência, daquela que eu mesmo ia buscar num alambique de Caçapava ou uma garrafa de vinho de boa procedência - argentino, chileno, espanhol ou francês. Não cheguei a ser viciado, mas adorava perder um bom dinheirinho nessas maquininhas de jogo, embora façam pelo menos uns três anos que nem chego perto de uma delas.  Ah, minha orientação sexual, digamos, é  "imexível", continuo gostando muito de mulheres e só de mulheres!
        É engraçado como meu cérebro e meus sentidos me acompanham nessa espécie de “jornada do bem”. Olho hoje com desprezo para imagens de costela de boi ou de porco, assadas, e que sempre tiveram minha preferência culinária; ainda neste sábado, no aniversário de minha nora, Daniela, rejeitei uma costela de porco que parecia estar uma delícia. São raros os pratos de “antigamente”, entre todos aqueles que frequentam a lista negra das melhores nutricionistas, que se mantêm hoje como alvo de meus desejos. Em matéria de comida saudável sou hoje mais rigoroso que minha mulher e meus filhos que há muito tempo implicavam com meus “excessos”.
        Isto tudo sem ter perdido o prazer gastronômico. Adoro a culinária japonesa, árabe, molhos picantes, peixes. Aprendi, contudo, a comer moderadamente. Ainda estou amarrado a uma carga muito grande de medicamentos - controle da pressão, diabetes, dores neuropáticas -, mas a previsão é que tudo deve ser reduzido aos poucos. Quando sentir que posso, tomarei uma taça de vinho de boa qualidade, uma vez ou outra, a única “extravagância” que me desperta o desejo de voltar a cometer.
        A pergunta que me faço é por que resolvi mudar tanto meus hábitos e costumes? Será por medo da morte? Medo de ter um segundo AVC? A verdadeira resposta eu ainda não descobri e ainda estou tentando achá-la no “escondido” da alma. Penso nisso com muita frequência.
Ao decidir fazer este Blog minha preocupação foi esmiuçar, nesta experiência de saúde, tudo que ela tem de útil para os meus leitores, tornando pública minha grande e íntima preocupação de cunho filosófico, que é ajudar as pessoas que tentam encontrar um caminho mais saudável para viver. Assim sendo, tenho de dar o bom exemplo, sem outras alternativas.

 Acho que minha grande mensagem a todos que me lêem é que não existem grandes sacrifícios em adotar uma vida mais saudável, pois é possível “construir” uma dieta atraente, para qualquer paladar, fora de extravagâncias e excessos. Além disso, a caminhada descontraída por regiões urbanas ou rurais pode ser uma alternativa saudável e divertida de exercício físico para todas as pessoas que não têm as restrições de acesso que eu tenho agora, das quais eu poderei me livrar através da fisioterapia.
        Sei que os tetraplégicos - pessoas que sofreram lesão medular mais severa que a minha, com imobilização total dos quatro membros - também podem sair em busca de sua dieta ao mesmo tempo saudável e apetitosa e, quem sabe, ter acesso a instrumentos que deixem suas restrições de acesso, digamos, suportáveis. Minha atração pelo jogo vai merecer um texto exclusivo dentro de alguns dias.

  (Desenho do Homer Simpson comento)

01/09/2014

Eu só queria um segundo banho

       Até então conhecia apenas a fama do pai do cardiologista que me atendia na Unicamp, o também cardiologista Otávio Rizzi, dos melhores médicos de sua especialidade no Brasil, mas, por intuição, percebi que era ele que vinha em direção ao meu leito na UTI arrastando atrás de si um grupo enorme de estudantes de Medicina. O Dr. Rizzi por certo era informado da condição de cada paciente e o grupo “pedagógico”, que ele liderava, ia parando cama a cama ouvindo primeiro uma rápida preleção do mestre, que em seguida respondia perguntas. Era tudo muito rápido certamente para dar tempo de percorrerem todos os leitos.
        Eu estava no momento tentando me adaptar à minha nova condição de hemiplégico e sentia necessidade de um segundo banho por dia. Ao me ver cercado por tantos estudantes e pela figura célebre daquele médico eu senti que era hora de fazer alguma coisa em favor das pessoas que sofrem paralisia. Já havia refletido sobre minha nova condição e percebido que, focados em suas especialidades, certos setores de instituições como a Unicamp, a concluir pela cardiologia, têm uma pálida noção do que é a hemiplegia ou a tetraplegia, de modo que não percebem e por não perceberem não atendem certas necessidades específicas desse tipo de paciente que é tratado por um senso igualitário em si mesmo profundamente desumano. 
        Percebi um certo nervosismo do “velho mestre” ao me apresentar aos estudantes. Intui que ele achou que eu, assim que recebesse a palavra, iria disparar uma série de críticas pesadas contra a instituição que ele ali representava , a Unicamp, por haver sido internado com problemas coronários e me encontrava a caminho de ser “devolvido” à sociedade em piores condições de  saúde que entrei - havia entrado caminhando e sairia entrevado, preso à uma cadeira de rodas. Ele ali era a autoridade e de repente viu-se diante de um jornalista experiente e calejado em driblar resistências das autoridades. Passado o efeito das anestesias e de outras drogas exigidas pela cirurgia, percebia que o AVC deixara razoavelmente intacta minha capacidade intelectual. Bem que ele, o doutor Rizzi, quis escapar, mas eu soube como mantê-lo preso ao diálogo até ao ponto em que me dei por satisfeito:


- Vocês professores e médicos precisam ouvir mais os pacientes, estar mais próximos deles, conhecer melhor suas necessidades- adverti, com certa petulância.

- Ao que eu saiba não há nada que vocês precisam que nós não estamos oferecendo...

- Há sim, eu disse.
Eu havia chegado ao ponto que desejava naquela conversa. O “velho mestre” já se desarmara, deixou as pedras de lado e me disse num tom bem mais afetuoso:

- Pois diga então o que lhe aflige.
- Não quero muita coisa, quero um banho matinal. Só isso.               
        Eu já havia descoberto o que um bom banho é capaz de proporcionar aos hemiplégicos, que não podem ser submetidos ao mesmo padrão de tratamento rigoroso de uma UTI. Os membros paralisados começam a pesar de um modo pavoroso entre um banho e outro - numa UTI, o banho é programado de 24 em 24 horas por paciente, um ciclo completamente inadequado para quem sofreu hemiplegia ou, suponho,tetraplegia e ainda não teve tempo de fazer nenhuma fisioterapia. O banho tonifica a pele e a fisioterapia distende os músculos. Ambos quebram a sensação de peso que vem com a paralisia e restabelecem uma certa harmonia no corpo que se tornou desigual.
        Terminado meu diálogo com o Dr. Rizzi, a comitiva afastou-se alguns metros da minha cama e formou uma espécie de círculo em torno do catedrático e de alguns outros médicos que eu já identificava como  responsáveis pela internação. Terminadas as confabulações, que à distância percebi tratarem do meu caso, uma médica que já conhecia da fase de pré-internação – Dra. Tatiana – aproxima-se de mim para informar que eu receberia alta da UTI e tomaria meu segundo banho do dia, já livre dos rigores padronizados. E assim foi feito, rapidamente, em menos de duas horas.
        Esse caso traz às grandes instituições de Saúde, públicas ou particulares, um belo ponto de inflexão: é preciso ouvir os pacientes em todas as fases do tratamento, conhecer melhor suas sensações e demandas, ter com eles grande empatia para assim definir os
critérios e o padrão do atendimento, se é que todas elas buscam aperfeiçoar seus ideais humanísticos.
(Imagem do filme Patch Adams, que trata do mesmo tema,
e também uma homenagem a Robin Willians)