01/09/2014

Eu só queria um segundo banho

       Até então conhecia apenas a fama do pai do cardiologista que me atendia na Unicamp, o também cardiologista Otávio Rizzi, dos melhores médicos de sua especialidade no Brasil, mas, por intuição, percebi que era ele que vinha em direção ao meu leito na UTI arrastando atrás de si um grupo enorme de estudantes de Medicina. O Dr. Rizzi por certo era informado da condição de cada paciente e o grupo “pedagógico”, que ele liderava, ia parando cama a cama ouvindo primeiro uma rápida preleção do mestre, que em seguida respondia perguntas. Era tudo muito rápido certamente para dar tempo de percorrerem todos os leitos.
        Eu estava no momento tentando me adaptar à minha nova condição de hemiplégico e sentia necessidade de um segundo banho por dia. Ao me ver cercado por tantos estudantes e pela figura célebre daquele médico eu senti que era hora de fazer alguma coisa em favor das pessoas que sofrem paralisia. Já havia refletido sobre minha nova condição e percebido que, focados em suas especialidades, certos setores de instituições como a Unicamp, a concluir pela cardiologia, têm uma pálida noção do que é a hemiplegia ou a tetraplegia, de modo que não percebem e por não perceberem não atendem certas necessidades específicas desse tipo de paciente que é tratado por um senso igualitário em si mesmo profundamente desumano. 
        Percebi um certo nervosismo do “velho mestre” ao me apresentar aos estudantes. Intui que ele achou que eu, assim que recebesse a palavra, iria disparar uma série de críticas pesadas contra a instituição que ele ali representava , a Unicamp, por haver sido internado com problemas coronários e me encontrava a caminho de ser “devolvido” à sociedade em piores condições de  saúde que entrei - havia entrado caminhando e sairia entrevado, preso à uma cadeira de rodas. Ele ali era a autoridade e de repente viu-se diante de um jornalista experiente e calejado em driblar resistências das autoridades. Passado o efeito das anestesias e de outras drogas exigidas pela cirurgia, percebia que o AVC deixara razoavelmente intacta minha capacidade intelectual. Bem que ele, o doutor Rizzi, quis escapar, mas eu soube como mantê-lo preso ao diálogo até ao ponto em que me dei por satisfeito:


- Vocês professores e médicos precisam ouvir mais os pacientes, estar mais próximos deles, conhecer melhor suas necessidades- adverti, com certa petulância.

- Ao que eu saiba não há nada que vocês precisam que nós não estamos oferecendo...

- Há sim, eu disse.
Eu havia chegado ao ponto que desejava naquela conversa. O “velho mestre” já se desarmara, deixou as pedras de lado e me disse num tom bem mais afetuoso:

- Pois diga então o que lhe aflige.
- Não quero muita coisa, quero um banho matinal. Só isso.               
        Eu já havia descoberto o que um bom banho é capaz de proporcionar aos hemiplégicos, que não podem ser submetidos ao mesmo padrão de tratamento rigoroso de uma UTI. Os membros paralisados começam a pesar de um modo pavoroso entre um banho e outro - numa UTI, o banho é programado de 24 em 24 horas por paciente, um ciclo completamente inadequado para quem sofreu hemiplegia ou, suponho,tetraplegia e ainda não teve tempo de fazer nenhuma fisioterapia. O banho tonifica a pele e a fisioterapia distende os músculos. Ambos quebram a sensação de peso que vem com a paralisia e restabelecem uma certa harmonia no corpo que se tornou desigual.
        Terminado meu diálogo com o Dr. Rizzi, a comitiva afastou-se alguns metros da minha cama e formou uma espécie de círculo em torno do catedrático e de alguns outros médicos que eu já identificava como  responsáveis pela internação. Terminadas as confabulações, que à distância percebi tratarem do meu caso, uma médica que já conhecia da fase de pré-internação – Dra. Tatiana – aproxima-se de mim para informar que eu receberia alta da UTI e tomaria meu segundo banho do dia, já livre dos rigores padronizados. E assim foi feito, rapidamente, em menos de duas horas.
        Esse caso traz às grandes instituições de Saúde, públicas ou particulares, um belo ponto de inflexão: é preciso ouvir os pacientes em todas as fases do tratamento, conhecer melhor suas sensações e demandas, ter com eles grande empatia para assim definir os
critérios e o padrão do atendimento, se é que todas elas buscam aperfeiçoar seus ideais humanísticos.
(Imagem do filme Patch Adams, que trata do mesmo tema,
e também uma homenagem a Robin Willians)

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